29.3.09

PECCATA MUNDI


CAPÍTULO 2





O vigário Carrão sempre acalentou a idéia de um dia tornar-se cardeal. Atraía-o a pompa e circunstância do cargo, a aura de poder daqueles príncipes da igreja, sempre gordos, rotundos, elegantes; pesava também na sua admiração a boa vida que deveriam levar, o pouco trabalho que deveria dar ser um cardeal, principalmente se morasse no Vaticano, sem contar a influência e o prestígio que tais figuras sempre exercem e gozam.
Na verdade, ainda em Portugal, ele primeiro sonhou ser um marquês, senhor de muitas terras, um fidalgo das cortes, coisa impossível para um filho de camponês como ele. Depois pensou ser burguês, banqueiro, mas nunca teve tostão algum para começar aquela atividade progressista. Foi quando seu pai o obrigou a seguir a carreira religiosa, único jeito de ser alguma coisa sem ter de gastar o dinheiro que o pai não tinha. Assim, o jovem Leocádio foi lavar latrinas no seminário, lá começou a estudar, e iniciou sua carreira em direção ao cardinalato.
Ainda como lavador de latrinas no seminário, descobriu que sua vocação religiosa, sem desprezar a fé nos dogmas, incluía a posse de terras, o desejo de ouvir o barulho mavioso e doce de moedas sonantes, e uma grande sensação de impunidade por pertencer à Santa Madre Igreja. Para ele, na verdade, este sentimento de impunidade era traduzido por uma profunda confiança na bondade divina, no perdão dos pecados, mesmo os mais cabeludos, através do sacramento da confissão. Confissão tanto mais eficaz, quanto mais direta, sem intermediários, como acontecia com as que ele fazia ao próprio Deus. Aos seus confrades ele declarava somente o trivial variado.
Quando foi ordenado padre, essa sua nova posição eclesiástica não foi suficiente para retirá-lo da senda que levava a costumes não de todo recomendáveis a pastores da igreja. Assim, foi sonhando com as riquezas do novo mundo, com a catequese no meio dos índios e com sua futura liderança da igreja, que o padre Leocádio Carrão Brindeiro veio aportar por estas terras.
Ainda em Portugal, o jovem Carrão, em função de sua pouca idade, quando a carne esquenta e o sangue ferve, andou cometendo pequenos delitos e pecados carnais que obrigaram seus superiores a vigiá-lo mais de perto. O certo é que com tão pouco tempo de ordenamento o jovem padre era obrigado a se confessar quase todos os dias e a fazer penitências e sacrifícios que, se serviram para lhe apagar os pecados anteriormente cometidos, pouco adiantaram no que diz respeito à prevenção dos que estavam por acontecer.
De pecadilho em pecadilho, de deslize em deslize, de esbórnia em esbórnia, o destino terminou fazendo o jovem padre aportar aqui, nessa Filipéia de Nossa Senhora das Neves, numa espécie de degredo religioso, castigo que ele terminou aceitando como dádiva.
É certo que aqui ele via enterradas suas pretensões de rápida ascensão na carreira eclesiástica, coisa que ele já não desejava com o mesmo entusiasmo, se bem que mesmo com essa desistência consciente, nada o impedia de continuar sonhando com as vestes púrpuras dos velhos cardeais, de se ver abençoando a multidão nas cerimônias no pátio da igreja de São Pedro ou de numa mão ter as chaves do céu e na outra as chaves do cofre do Vaticano. No dia-a-dia, quando a bruma dos sonhos se esvaía por completo, ele voltava a ser tentado pelo chamamento da carne, esse sim, bem real.
Os problemas do padre Carrão eram as tentações que o afligiam, aqueles desejos e sensações que a Igreja condenava, como os sete pecados capitais, por exemplo, dos quais ele tinha uma enorme dificuldade de fugir.
Uma das suas maiores fraquezas era a mesa. Foi assim desde criança, quando nada parecia satisfazer sua fome e, muitas vezes, fazia incursões furtivas às reservas alimentares que porventura sua mãe escondesse para as ocasiões de aperto. Agora adulto, atacava leitões, capões, franguinhos e perus com a mesma determinação com que os cruzados atacavam os mouros e as despensas pagãs.
Que culpa tinha ele de o vinho ter esse sabor de néctar, ser tão suave e aveludado a ponto de lhe provocar aquela sensação de flutuação que devem sentir os anjos nos seus vôos sobre o paraíso? O que o perdia completamente eram aquelas farofas fenomenais, os guisados indescritíveis, as costeletas douradas, os assados sem comparação, feitos de propósito para dar água na boca. E o que dizer dos molhos pardos, dos criminosos molhos de cabidela que a negra da cozinha fazia como ninguém? E o que na terra se compara a essa ligeira vertigem que se sente quando de pança cheia, bucho sangrando, vem a vontade de se deixar cair em uma rede macia num recanto silencioso e ventilado?
Era, então, nesses preciosos momentos que lhe vinham os maus sonhos – batalhões de belzebus vestidos e encapuzados como os padres da Santa Inquisição – atrapalhando o sono tranqüilo que coroaria aquela sua principesca refeição.
Depois que se iam esses sonhos maus, começava a metralha de flatos e roncos que, de tão altos e constantes, confirmavam para toda a vizinhança que Sua Reverendíssima, o vigário Carrão, fazia a sua sesta.
O vigário comia muito, dormia com fartura, mas não esbanjava os recursos escassos que Deus espalhou pelo mundo e tanto trabalho dão para se conseguir. Seus escravos, além dos agregados livres e serviçais que viviam às suas expensas, comiam cada um a sua ração de feijão e batatas, sem contar com os normais surrupios do que sobrava à mesa que a negra da cozinha não deixava de fazer.
O vigário Carrão tinha especial predileção pelas moedas de ouro. Tratava todas e cada moeda de seu cofre como se fosse a última moeda da face da terra e era mais fácil ver o joelho da madre superiora do que um reflexo, mesmo pálido, de uma das inúmeras peças de seu tesouro.
E se padecia do pecado da inveja, este se restringia ao tesouro do Vaticano, ao tesouro da Coroa portuguesa e ao que deveria ter acumulado o governador da província. Claro que invejava a boa vida, o prestígio e o dolce far niente que imaginava ter o bispo, seu superior; e quando via o governador da província no seu luxuoso cabriolet não deixava de enumerar todos os defeitos que lhe eram atribuídos, relembrar todos os pecados que lhe havia confessado e todas as falcatruas que fizera para chegar a tão alto posto; também, verdade seja dita, não poder ir, livremente, como todos os homens de bem da província, ao prostíbulo e lá tomar dos melhores vinhos e gozar da companhia das mais belas mulheres, era uma coisa que sinceramente, invejava.
Mas nenhum daqueles empertigados senhores, embalsamados nas suas casacas e envoltos na sua prepotência, possuía a fortuna que ele possuía. Era o homem mais rico da província. Podia segurar algumas barras de ouro em sua mão como se fossem rapaduras e tomava vinhos caros – às escondidas, é verdade -, mas tomava; e se não era uma alta autoridade da igreja, - e aí ninguém o superaria em vestes brilhantes e em prepotência – superava a todos em bens e escravos, com a vantagem.
No dia-a-dia era um homem afável, até educado, desde que o interlocutor fosse de determinada posição social ou, quando não fosse o caso, pudesse lhe trazer algum benefício, ou, para ser mais explícito, lucro. Só perdia a compostura e se zangava, atingindo a raias da ira, pecado que mais tarde e prontamente ele confessava e apagava com penitência, quando lhe quebravam alguma vasilha na cozinha, lhe passavam a perna em algum negócio, coisa muito rara, ou quando imaginava que o sacristão andava a beber os vinhos da adega da paróquia que, por serem caros, não podiam ser desperdiçados por quem não tinha as investiduras sacerdotais.
Apesar do que diziam as más línguas, o padre Carrão era um vigário diligente. Quando se tratava de fazer os balancetes de suas fazendas, calcular os juros dos empréstimos ou negociar partidas de açúcar, escravos, rapadura ou cachaça, não havia quem lhe chegasse aos pés. Transformava-se num adolescente transbordante de energia. Seus olhos brilhavam como brilham os olhos dos jovens enamorados.
Nas negociações que envolviam dinheiro, era imbatível. Ninguém melhor que ele para realçar as qualidades do que era seu, e rebaixar, sem ferir os brios do outro – e aí estava seu segredo –, as qualidades dos produtos do oponente. Nesses momentos era possuído de uma força estranha que fazia com que considerasse meia rapadura como se fosse um lingote de ouro ou uma partida de escravos, e dez réis como se fosse todo o tesouro do Vaticano.
As únicas coisas para as quais, às vezes, lhe faltavam energia e vontade eram os casamentos e batizados – sempre numa quantidade que excedia o tempo disponível, principalmente quando eram desses que a obrigação sacerdotal manda que sejam feitos gratuitamente e dos quais não vem nada para os cofres da igreja.
Não era preguiçoso, como diziam alguns de seus detratores ou invejosos de sua boa sina, era o cansaço por ter tantas atividades e o dia ter somente vinte e quatro horas. Tanto não era preguiça que rezava quase todas as missas que lhe impunha a obrigação de vigário, sempre às quartas e domingos, sem sermões muito demorados, é verdade, pois os senhores da província já os conheciam de cor, e os pobres diabos, que nem sabiam ler nem escrever, com certeza não os compreenderiam.
O vigário orava e se penitenciava como ninguém, justiça lhe seja feita. Principalmente quando no ardor de um negócio, tinha que lançar mão de certos expedientes para garantir seu lucro. Alguns impostos que eram esquecidos, certas partidas de mercadorias que não entravam na contabilidade; presentes que dava em troca da boa vontade de certos coletores de impostos ou da presteza com que foi atendido por este ou aquele membro do governo. Aí não contabilizava certos afagos que fazia ao chefe da força pública quando tinha necessidade da proteção para certos negócios que sua atividade exigia.
Também muito se mortificava quando os encantos de uma dama o faziam escorregar dos leitos matrimoniais – afinal eram três – ou quando uma escrava jovem o atraía com a força com que um imã atrai o ferro. Seu único refrigério era a penitência e a certeza de que nascera assim e nada podia fazer. O que podia ele, pobre homem mortal, pura carne pecadora, fazer contra os desígnios da natureza a não ser rezar e se penitenciar?
Afora isto, vez por outra, a fraqueza lhe impunha dois ou três pecados mortais que, não fosse a enorme força da absolvição, seriam suficientes para queimá-lo no fogo do inferno por toda a eternidade. Talvez fosse por esses que, sem nenhuma razão aparente, a não ser aquela que dorme no mais escondido desvão de escada da nossa consciência, o vigário Carrão sonhava com a Santa Inquisição.

UMA HISTÓRIA DO CONTO

PARTE 10

Guillermo Cabrera Infante

Horacio Quiroga é o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos, quá, quá, quá) e um louco perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num acidente de caça (caçava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois países reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai pode ser uma desgraça, mas perder um padrasto me parece um descuido.
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juízes qualificaram de acidente. Quiroga se casou, e, não muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mulher a passá-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso dizê-lo, foi a vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio.
Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque parece uma violenta telenovela e é mais interessante que sua ficção - que não é menos violenta. Um de seus livros de contos se chama A Galinha Degolada. No conto que dá título e tom ao volume, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma linda irmãzinha. Mas os dois irmãos vêem - ou melhor, observam - a madre degolar uma galinha para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha.
Li os contos de Quiroga, todos, na adolescência e acreditei em todos. Eu era, como vocês já devem ter deduzido, mentalmente são, mas impressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem com a expulsão deste encontro, eu não os leria nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido também que Horacio Quiroga era dependente não só de morfina mas da literatura de Poe.
Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabeça bem no lugar, é Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis Borges só porque eram amigos e colaboravam em empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos, Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez mais individual e distinto, não apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a mais comovente história de amor da literatura em espanhol do século 20. Chama-se A Invenção de Morel e, embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou conto longo e, para mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho francês "cherchez la femme".
Agora uma breve interpolação para falar, brevemente, embora ele mereça ensaios e tratados, desse grande autor: um americano que não escreve em espanhol e que não segue a tradição de sua língua, porque está criando as duas. Refiro-me a Machado de Assis, o único grande romancista sul-americano do século 19, que é também um contista extraordinário: sempre original, sempre na vanguarda de um homem só. Leiam, como aperitivo para o festim de um Trimalcião literário, seu conto "O Alienista".
O uruguaio Felisberto Hernández era o oposto físico do cubano Virgilio Piñera. Não gostava de homens magros, como Virgilio, mas de mulheres, muitas, gordas e caras: casou-se quatro vezes. Ao contrário de Virgilio, que nunca foi musical, Felisberto (podemos chamá-lo Felisberto: ninguém se chama assim) era um músico profissional, que, curiosamente, trabalhava como pianista de teatro, mas não de palco, e sim no fosso, e não para acompanhar sopranos, mas fazendo música de fundo para filmes mudos.
Suas vidas opostas tiveram um final parecido, mas diferente. Virgilio morreu reconhecido como pederasta passivo, com passagens pela prisão, condenado por invertido. Sua morte foi chorada por poetas pederastas, mas seu cadáver desapareceu do velório: as autoridades estavam convencidas de que seu corpo presente recriaria o ausente com fins políticos. Felisberto morreu de leucemia muito mais jovem que Virgilio, mas seu corpo inchou tanto que foi preciso procurar às pressas um caixão adequado, uma coisa tão enorme que não pôde ser tirada pela porta da funerária e saiu para a eternidade por uma janela.
Há um provérbio latino que propõe que se chega ao final da vida conforme se viveu. Os respectivos finais de Virgilio Piñera e Felisberto Hernández foram, se não vidas, mortes paralelas. Acho que não por acaso a editora americana que publicou os Contos Frios de Piñera agora publique os contos completos de Hernández. Mas vale notar e anotar uma diferença notável: Felisberto estava meio louco, Virgilio, ao contrário, sempre teve a cabeça bem assentada na guilhotina. Precisava apenas de uma revolução, e a teve.
Juan Rulfo chamou Guimarães Rosa de "o maior autor surgido nas Américas neste século". Não se deve exagerar, mas Guimarães Rosa, que escreveu o melhor romance do chamado "realismo mágico", é um grande escritor. Para deleite de vocês (já que sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas é longa, complexa e metafísica), ele tem um volume de contos, mais zen do que sensacionais, intitulado Primeiras Estórias, que em espanhol ganhou o sugestivo título de um de seus textos, "A Terceira Margem do Rio". Há outros compatriotas de Machado de Assis que vale a pena citar, ainda que rapidamente. Murilo Rubião, com seu conto "O Ex-Mágico da Taberna Minhota", que é "sui generis", como são os contos de João Ubaldo Ribeiro, sobretudo seu "Foi um Dia Diferente o da Matança do Porco" e o elusivo e alusivo Rubem Fonseca, que com seu “Corações Solitários" criou um escândalo internacional ao ser proibido pelas autoridades de seu país.
O escândalo chegou aos ouvidos do presidente Carter, mais conhecido como "el manisero", não por causa da saborosa rumba havanesa, mas por ter enriquecido cultivando amendoim. Há outra rumba chamada "Tanta Lipidia por un Medio de Maní" cujo título me leva a explicar aqui meu interesse e até meu afeto pelos cariocas do conto. Não há outro país na América que se pareça tanto com a minúscula Cuba como o gigantesco Brasil: ambos têm sua musicalidade na música e na língua, ambos são uma mistura de brancos ibéricos e negros africanos, ambos criaram uma nova religião, que no Brasil se chama macumba e, em Cuba, "santeria".
Todos acreditamos que o ritmo não está só na música mas na fala, nos movimentos do corpo e nesse balanço que em Havana se chama "el caminao". Este meu ensaio, por exemplo, foi escrito como falam em Havana os "hablaneros".

23.2.09

CONTO


Carnaval

Geraldo Maciel

Anteontem vendera o relógio para almoçar. Hoje já não sabia o que fazer. Tinha um sábado de carnaval pela frente, nenhum tostão no bolso e uma farra coletiva que o esperava nas ruas da cidade. Talvez fosse essa a salvação. Mesmo sem dinheiro, beberia. A solidariedade dos bêbados talvez até propiciasse alguma comida num boteco, um lanche.
Com o que tinha arremedou uma fantasia, espalhou um resto de Maizena no rosto e na cabeça e saiu para a rua já imitando um bêbado, apesar das 10 horas da manhã. Ali no centro, encontrou caveiras, mendigos, dráculas, bichas e travestis, todos esperando um clima que a cachaça ainda não conseguira estabelecer. A sua imitação devia estar perfeita, mas ainda era cedo para tentar abordar algum grupo, acercar-se de uma rodinha de samba. Andou pela praça até começarem a circular alguns carros com troças, rodas de samba motorizadas com filhinhos de papai atirando jatos de lança-perfume para o ar. Algumas horas depois a praça estava cheia, ele de barriga vazia e tentando agarrar algumas garrafas que sempre escapuliam, nunca chegava à sua mão, a não ser quando já estavam vazias. Não conseguira abordar nenhum folião que tivesse bebida disponível e possibilitasse um gole de qualquer coisa. Um gole só. Talvez sua imitação não fosse convincente ou sua timidez não estimulasse a prodigalidade dos bêbados.
Já sentia certo mal estar, uma tontura, um desfalecimento se instalando pelo corpo. A fome. Agora iria criar coragem e abordar alguém, o primeiro que aparecesse. Foi até uma lanchonete que estava aberta e ficou olhando o interior do balcão-vitrine.
Ah, como gostaria de ser aquelas abelhinhas! Passeando sobre o mel do pão doce, lambuzando-se nos cristais de açúcar, comendo aquela casquinha marrom, o miolo alvo, aventurando-se naqueles buraquinhos cheirosos, melando as patinhas cabeludas naquela geléia amarela e perfumada do creme! O rosto refletido no vidro do balcão, fundia a sua imagem com o pão, com as abelhas, numa proximidade tentadora. Fez um gesto com a boca e sua imagem abocanha um naco de pão com abelhas, creme, açúcar; na boca real o mesmo vazio que sentia nos últimos dois dias.
O mesmo vazio na boca, agora com uma catarata de saliva pegajosa e o hálito ruim daquela cárie. Gostou da sua imagem de pirata. O lenço colorido e brilhante estava bem; o tapa-olho desenhado é que lhe dava a imagem de quem havia levado um murro; os brincos, apesar de meio esverdeados, compunham bem a imagem. Os outros foliões passavam refletidos pelo vidro, mas não ameaçavam apossar-se do seu pão, de suas abelhinhas.
Uma tribo indígena passou cambaleante às suas costas. Voltou-se para ver. Gostava do som dos pífanos. O compasso da música era estranho. Parece que tentava acompanhar o índio forte, lá na frente, que lutava para manter ereto o estandarte, um enorme cocar de penas e vidrarias que o vento tentava derrubar e a aguardente dificultava manter a prumo. Brancos, também embriagados, tentavam chafurdar na esquisita harmonia da tribo. Pelo descarnado da cara, o estado dos dentes e a textura das fantasias dava para ver que os índios estavam piores do que ele. Um carnaval de fodidos, pensou. A folia dos deserdados.
Esqueceu por um momento suas abelhinhas para ver uma troça de estudantes que passava. Agitou os braços, ensaiou uns passos, mas logo sentiu que não podia continuar. Não havia bebido, não havia comido. Preferiu admirar as roupas sumárias das moças, corpos roliços, pernas bem feitas, a pele bronzeada destacando uma penugem loura nas coxas, nos braços. Que diferença entre sua pele e a das moças que passavam; um desfile de sultões e odaliscas contra um faminto pirata cor de icterícia. Os adornos, a pintura daqueles rostos, contra ele e seu punhado de Maizena sobre a cabeça.
Como pode ser? Um pirata, imitando um bêbado desde cedo, sem um tostão no bolso e ainda por cima sem conseguir que alguém lhe dê um gargarejo de bebida em pleno sábado de carnaval!
Por que não voltar para seu quartinho fedorento, armar sua rede e dormir, dormir. Com o sono a fome passa, também ela adormece. Por que não adoecia logo como aqueles seus colegas de olhos cavos e chiado no peito, seus vizinhos de quarto? Não seriam ruim uma febre, uns vômitos, pois só assim teria a ajuda de Darlene e Suzana, também vizinhas, e que mesmo após saírem do cabaré às quatro, ainda faziam chá, traziam bolachas e esquentavam os estudantes doentes com o calor dos seus peitos, botava-os para dormir com o cheiro do seu perfume.
Mandei fazer uma linda fantasia bem diferente por ser toda de capim. Essa música, cantada agora por aquela velhinha bêbada, o deixa mais tonto, lembrando da mãe, do pai, de sua casa, do velho rádio de olho mágico que diminuía quando entrava a Rádio Clube de Pernambuco. Gostava da voz de Claudionor Germano um dos poucos cantores que ouvia quando era menino.
As pernas já estavam bambas, mas foi até um grupo de homens vestidos de mulher onde algumas garrafas rodavam de mão em mão. Conseguiu pegar uma na passagem e tomou um grande gole. Uma explosão. Relâmpagos infinitesimais disparam em suas veias, um tufão de luz e calor subindo, tomando o fôlego, girando a praça e os foliões, deixando-o inconsciente por segundos. Depois, uma grande calmaria, um fogo dentro, o início da percepção indivisa das coisas. Mais alguns goles, e as coisas começam a adquirir cores mais vivas, outras se distanciam, depois vem um véu que dilui os contornos, mistura tudo numa suave confusão. Mais alguns goles e as pernas ficam mais bambas ainda. Melhor sentar. Volta à vitrine, volta a olhar suas abelhinhas embriagadas de mel. Apóia-se na parede. Vem uma ligeira náusea, um engulho, um rodopio.
É noite, muita luz, e sem saber como, está no meio do salão de um clube que ele nem sabe qual é. Só alegria, luz, bebida, lança-perfume, belas fantasias. As mesmas garotas de pele bronzeada e penugem loura sobre as coxas agora o abraçam, acreditando talvez que sua cor de icterícia seja pintura, fantasia. Assim, pula toda a noite sem reparar na comida sobre as mesas. Só quer as garrafas, o suor daqueles corpinhos esguios, o porre da lança que o atira quase na borda do paraíso. Pega seu lenço, faz um jato e o aproxima do nariz. Ainda percebe os primeiros clarins de vassourinhas entre a aspiração profunda e o apagamento completo.
Acorda com o bafo quente das narinas do burro do catador de lixo soprando no seu rosto. Pensa tratar-se do jerico que come fantasias - ainda aquela música - e levanta meio adormecido. Na madrugada quase fria, divisa a praça e aqueles mesmos figurantes do dia anterior caídos sob bancos, acariciando garrafas, abraçando postes de luz. Alguma coisa pesa, não sabe bem se no peito ou no estômago. Pensa no baile sem ter certeza, ainda, se foi sonho e sai em busca de seu quarto, de sua pensão. Talvez agora venha uma gripe, tenha alguma febre, quem sabe uma pneumonia leve e possa ter, como os outros, as bolachas, o chá, uma sopinha; possa adormecer com o adocicado perfume de Darlene, se proteger com os ternos seios de Suzana.


(Do livro "Aquelas criaturas tão estranhas" Ed. Rio Fundo - 1995.

UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 10

Guillermo Cabrera Infante

Horacio Quiroga é o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos, quá, quá, quá) e um louco perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num acidente de caça (caçava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois países reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai pode ser uma desgraça, mas perder um padrasto me parece um descuido.
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juízes qualificaram de acidente. Quiroga se casou, e, não muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mulher a passá-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso dizê-lo, foi a vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio.
Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque parece uma violenta telenovela e é mais interessante que sua ficção - que não é menos violenta. Um de seus livros de contos se chama A Galinha Degolada. No conto que dá título e tom ao volume, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma linda irmãzinha. Mas os dois irmãos vêem - ou melhor, observam - a madre degolar uma galinha para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha.
Li os contos de Quiroga, todos, na adolescência e acreditei em todos. Eu era, como vocês já devem ter deduzido, mentalmente são, mas impressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem com a expulsão deste encontro, eu não os leria nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido também que Horacio Quiroga era dependente não só de morfina mas da literatura de Poe.
Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabeça bem no lugar, é Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis Borges só porque eram amigos e colaboravam em empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos, Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez mais individual e distinto, não apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a mais comovente história de amor da literatura em espanhol do século 20. Chama-se A Invenção de Morel e, embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou conto longo e, para mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho francês "cherchez la femme".

27.1.09

TRIGAL



Querido Vincent

Ontem à noite não dormi. Pior. Tive pesadelos de olhos abertos. Os corvos, o trigal, aquele céu tempestuoso, profundo, denso como uma geléia, e misterioso, sensualmente tenebroso, não me deixaram dormir. Os corvos vão ou vêm? Fogem do furacão turquesa de suas pinceladas ou são atraídos por ele, sugados para um mergulho sem volta que pode representar a redenção ou a morte? Note que o trigal geme, se contorce tangido por alguma coisa que não é o vento; deita seu amarelo ouro sobre si mesmo. Medo e desfalecimento apesar da alegria nervosa sob isto que o move que, como disse, nem brisa é. O cansaço dos homens que aí mourejam não se vê. Nem precisa. Seus rastros de sangue se espalham pelos caminhos que levam ao turbilhão azul, não sei se para sempre. Agora, ainda insone, te escrevo para dizer, não, na verdade para te perguntar: Como queres que eu venda algo que só daqui a cinquenta anos será visível? Como queres que comprem algo que comove e assusta? Querido irmão, as pessoas a quem eu mostro tua obra, afastam-se dela como se o azul de sua pinceladas fosse indecifrável, como se o amarelo dos talos robusto de seu trigal os agredisse, mas ao mesmo tempo em que se afastam, o fazem dando as costas para a tela, mas com a cabeça voltada para ele. Estou te mandando algum dinheiro para que pagues tuas despesas mais urgentes. Tentarei vender alguns dos teus quadros que tenho comigo. Quanto ao trigal, está aqui na minha frente. Não consigo desgrudar os olhos dele, e assim sei que vou passar muitas noites. Espero que tuas dores de cabeça passem comestes remédios que estou lhe mandando. Gauguin pretende lhe fazer uma visita. Quem sabe possas trabalhar aí por uns tempos. Uma companhia te faria bem, apesar de eu achar que, com o temperamento dos dois, logo se criará alguma rusga entre vocês.
Fico aqui olhando o Trigal, sabendo que não vou conseguir vende-lo tão cedo, e sabendo que enquanto não vendê-lo, vou ter muitas noites de insônia.

Do teu irmão,


Téo